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A jornada de Juliette, a heroína do BBB 21


Como a literatura, a psicologia e o marketing digital explicam o sucesso da vencedora do Big Brother Brasil deste ano.

Escritores e fãs de literatura podem já estar familiarizados com a Jornada do Herói: o conceito foi criado pelo antropólogo Joseph Campbell e explicado pela primeira vez em 1949, no livro O Herói de Mil Faces. Segundo Campbell, todas as grandes histórias seguem um roteiro básico, que se repete sempre, e é composto de doze estágios. Alguns desses estágios são: a vida comum do herói antes de a aventura começar; o desafio que se apresenta ao herói; a entrada em um mundo mágico ou especial; o encontro de aliados e inimigos; as provações difíceis ou traumáticas pelo caminho; e, por fim, a recompensa.

Inúmeros clássicos da literatura ou do cinema (do mito grego de Prometeu  e da jornada bíblica de Moisés a O Senhor dos Anéis, Star Wars e Harry Potter) seguem exatamente a mesma fórmula. O Big Brother Brasil não é literatura ou cinema; mas é um espetáculo criado para entreter - e, apesar de se encaixar na categoria "reality show", carrega em si muitas características da ficção. Uma delas, importantíssima, é a presença de arquétipos.

Fundamental na literatura, o conceito dos arquétipos vem da psicologia: um arquétipo é um modelo ideal; um conjunto de crenças, características e informação que formam nossas percepções dos outros e de nós mesmos. Exemplos clássicos: mães tendem a ser vistas como amorosas e cuidadosas; pessoas mais velhas, como sábias; e assim por diante - temos arquétipos até mesmo em relação a animais, associando serpentes com traição, leões com majestade e liderança, e assim por diante. E, no Big Brother Brasil, ninguém entra por acaso: os participantes são escolhidos a dedo para representar diferentes arquétipos, com os quais diferentes espectadores possam se identificar.

- Eles são símbolos de coisas que, no cotidiano, são importantes para as pessoas - explica a psicóloga Catarina Gewehr, doutora em Psicologia Social pela PUC-SP. - As pessoas tornadas personagens, como é em um reality show, são escolhidas para participar por proporcionarem maior aderência a determinados perfis: você tem uma pessoa mais melancólica, uma pessoa misógina, uma pessoa mais inclusiva; a mocinha, o engraçadinho... Nós conhecemos na nossa relação cotidiana muitas "juliettes", muitos "gils", muitos "arthurs". É uma espécie de transferência de empatia: eu estou vendo no outro uma série de coisas que vejo na minha própria vida, nas minhas próprias relações; e essas coisas são apresentadas em forma de espetáculo. É isso que, no fim das contas, é a grande fórmula do Big Brother.

Entre esses vários arquétipos, o da advogada e maquiadora Juliette Freire se destacou de forma impressionante: parte do grupo Pipoca (ou seja, de anônimos que foram selecionados para o BBB 21), Juliette entrou no programa com pouco mais de três mil seguidores no Instagram - hoje, já acumula mais de 24 milhões (pelo menos até a publicação desta matéria); tendo ultrapassado o número de todos os brothers e sisters famosos contra quem disputou (e venceu!) o prêmio de R$ 1,5 milhão, inclusive a influencer Viih Tube, até então a mais seguida da edição. Levando em conta todas as 21 edições do Big Brother Brasil até aqui, Juliette só fica atrás, por enquanto, de Sabrina Sato, que conseguiu uma carreira de apresentadora após sua participação no reality.

A Jornada de Juliette

Lembra da Jornada do Herói? Pois bem: Juliette se encaixa nela com perfeição. De origem humilde, a paraibana foi do seu "mundo comum" para o "mundo mágico" da televisão; e nunca deixou de demonstrar seu espanto e maravilhamento até mesmo com as menores coisas que aconteciam no BBB 21. Enfrentou provações ao ser perseguida e ostracizada pelos outros participantes no início do programa; e também ao sempre ser derrotada nas provas do líder e do anjo - isso quando não era excluída delas. Acumulou uma boa parcela de inimigos; inclusive ex-aliados que a "traíram" - e retornou vitoriosa, principalmente após vencer, dramaticamente, a última prova do líder da temporada.

Além disso, Juliette ganhou fama entre o público por parecer "verdadeira", agir com o coração - em contraste com jogadores como Sarah, Projota e Viih Tube, que tinham estratégias (erradas ou acertadas) para tudo o que faziam dentro da casa.

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- Às vezes, socialmente, ser silencioso é mais produtivo do que ser sincero; mas nós vivemos em uma sociedade que valoriza muito a sinceridade, até mesmo o chamado "sincericídio" - diz Catarina. - A Juliette é até mesmo rude às vezes, mas sempre em momentos em que ser rude parece a melhor maneira de lidar com a situação. A expressividade, a simplicidade, um pouco de graça, até mesmo o visual dela, todas essas coisas são conectores arquetípicos; e talvez ela tenha muitos desses conectores, mais do que todos os outros personagens da edição.

Mas será que a personalidade de Juliette é "real"? Ou seja, será que ela se comporta dentro do programa como se comportaria na vida real, ou construiu uma imagem de acordo com o que pensava que poderia agradar ao público?

- A gente sabe que, no BBB, existem momentos mais cênicos; como as entradas ao vivo, os trechos conduzidos pelo apresentador do programa... Mas os participantes são olhados o tempo todo, 24 horas por dia, e em algum momento essa representação cai - comenta a psicóloga. - Nesses momentos, quem as pessoas de fato são aparece de maneira muito natural. É muito difícil se manter no personagem em um momento de grande tensão emocional, e as dinâmicas do programa são feitas para levar os participantes a esse estado de tensão. Essa mediação emocional é feita justamente para extrair quem de fato são essas pessoas.

Um fenômeno das redes

Mas não foi puramente a personalidade de Juliette que a transformou em favorita - e não é à toa que grande parte do seu sucesso é medido pelo número de seguidores nas redes sociais: Juliette é, em todos os sentidos, um fenômeno digital.

- Não acho que ela teria mais de vinte milhões de seguidores no Instagram só por estar no Big Brother, se não houvesse esse trabalho paralelo de gerenciamento de redes sociais - crava Elis Monteiro, especialista em marketing digital e gerenciamento de crises digitais, professora da FGV, IBMEC e ESPMO. - A gente nunca viu isso acontecer, né? O trabalho nas redes sociais da Juliette é muito completo, feito por um time de 18 pessoas. Eles atuam de forma profissional, e foram inclusive melhorando com o tempo.

- A Juliette fez um trabalho de planejamento anterior à ida dela ao Big Brother, e não foi a primeira a fazer isso: a Manu Gavassi, do BBB 20, virou case por ter feito, antes de entrar na casa, todo um trabalho de construção de como seria a persona dela nas redes sociais - Elis relembra. - Ela alcançou uma relevância enorme por conta das mídias. As duas, a Manu e a Juliette, viraram personagens, memes ambulantes, e isso deságua "na vida real". A popularidade da Juliette na vida real é intimamente ligada à popularidade dela nas mídias sociais.

- Eu acho que esse trabalho de definição de persona é algo que não bem feito junto às equipes da Karol Conká e do Projota, por exemplo - a especialista compara. - Eles são pessoas difíceis de lidar, mas quem trabalha com eles devia já saber disso e ter uma estratégia preparada.

​Elis estudou as redes sociais de Juliette, e cita aquele que é, em sua opinião, o principal acerto da equipe responsável:

- Uma coisa que eles fazem muito bem é transformá-la em personagem; aproveitar a personalidade muito genuína que ela tem - declara. - Ela ter essa personalidade interessante ajuda o trabalho deles, claro: trabalhar com a Karol Conká seria muito mais difícil, por exemplo, porque é um personagem muito complicado. A equipe explora muito a emoção, que é o principal combustível das redes sociais, e que a Juliette sempre expressa muito. A coisa do drama, nas redes dela, é feita de propósito, porque a gente sempre tem empatia por quem sofre.

- Eles também exploram bastante o elemento de torcida, que praticamente transforma a Juliette em um time de futebol - prossegue Elis. - Às vezes eu não acho isso muito legal, porque rola uma perseguição aos perfis dos outros participantes. Mas não dá pra negar que as redes sociais amam uma competição, então criar esse universo de torcida também funciona.

E o "fenômeno Juliette" não deve ser um caso isolado: Elis Monteiro acredita que devemos ver cada vez mais situações como essa.

- O digital influencia cada vez mais a sociedade como um todo - explica. - A gente vê isso não só no Big Brother, mas no dia a dia: tudo o que acontece na internet vira notícia "na vida real".

As redes sociais também fazem parte de um cenário que ajuda a explicar o interesse criado pelo Big Brother Brasil de modo geral - afinal, não parece estranho que tanta gente crie empatia por pessoas que não fazem parte de seu convívio, que não conhecem pessoalmente; e se envolvam a ponto de torcer fervorosamente por um participante ou outro?

- Dentro de um reality show, os participantes passam a fazer parte do convívio das pessoas em casa - aponta a psicóloga Catarina Gewehr. - E nós vivemos em um tempo que eu tenho chamado de "hipertelado", ou seja, que é dominado pelas telas do celular, do computador, da TV; e em que tudo o que acontece nas telas acontece também dentro da intimidade da nossa casa. Então é bem comum que essa convivência crie um vínculo; por mais que seja uma convivência unilateral, em que você não dialoga com os personagens.

O que nos leva de volta à literatura e ao cinema: afinal, não é exatamente assim, de maneira unilateral e aparentemente ilógica, que torcemos pelos heróis de nossos livros e filmes favoritos?

Por NSC Total

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