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Após três anos de trabalho, servidora que entrou na UFPE pelo sistema de cotas raciais tem nomeação anulada por decisão do TRF-5


Nívia Tamires ingressou na UFPE em 2017 pelo sistema de cotas raciais — Foto: Arquivo pessoal

O sonho do emprego público para a bióloga Nívia Tamires, de 34 anos, que ingressou pelo sistema de cotas raciais, foi interrompido após três anos de serviço na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A anulação da nomeação dela saiu no dia 7 de outubro, no Diário Oficial da União (DOU), com a nomeação de uma candidata de ampla concorrência, que entrou na Justiça para ocupar a vaga.

A exoneração foi determinada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). O tribunal entendeu que a cota para negros e pardos, que permitiu o acesso de Nívia ao cargo técnico de nível superior e é garantida por lei, havia sido aplicada de maneira errada pela UFPE.

Para o TRF-5, a instituição de ensino não verificou os critérios de regionalidade, ou seja, de reserva de vagas para aquele local. Segundo o tribunal, o processo transitou em julgado, ou seja, não pode ser mais objeto de recurso.

Nívia foi a terceira bióloga a assumir o cargo após o concurso da universidade, que inicialmente abriu uma vaga para a cidade de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata do estado, e outra para o Recife.

Também foi a segunda nomeada no Recife, para onde prestou o concurso, após a abertura de uma nova vaga e desistência de uma segunda pessoa ser chamada.


Para o o TRF-5, a vaga assumida por Nívia deveria ter sido ofertada para a candidata de ampla concorrência, que obteve a terceira colocação.

"Só após o surgimento de mais uma vaga, ou seja, a terceira vaga, é que deveria ser nomeada a candidata que concorreu às vagas destinadas aos negros e pardos", disse, em seu voto, o desembargador federal Cid Marconi.

A bióloga, lotada no Departamento de Oceanografia da universidade, contou que recebeu um e-mail da reitoria da universidade, no dia 16 de setembro, informando que sua nomeação seria anulada por causa da decisão judicial.

"Ingressei na Universidade através da política de cotas raciais. Se houve um erro com a outra candidata, assim entendido pelo juiz, é preciso corrigir, obviamente. Mas não com outro erro. Segundo tenho conhecimento, o processo judicial não pede minha exoneração, muito menos o cancelamento da minha nomeação", destacou.

Para a bióloga, a sua exoneração é um desrespeito com a política de cotas raciais. "A política de cotas tem que, por natureza, combater o racismo institucional, política que, mesmo já consolidada, ainda encontra resistência em muitos setores da sociedade", afirmou.

Nívia participou do concurso em 2016 e foi convocada a assumir o cargo, em 2017. Ela era professora de escolas do estado de Pernambuco e do município de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana. Para ser empossada, teve que pedir exoneração dos outros serviços.

"Me exonerar, além de me tirar do espaço historicamente negado a negros e negras, me coloca em situação de total vulnerabilidade econômica. Não tenho nenhum outro meio de renda e, para assumir o cargo, pedi exoneração de dois cargos públicos, um dano inimaginável que nenhuma ação reparatória compensaria. O sentimento é de apagamento da minha história de resistência e existência", disse.

Além de ser convocada para o cargo público, Nívia também foi selecionada para o mestrado pelo Departamento de Sociologia da UFPE. Em sua pesquisa, ela promove estudos sobre o racismo ambiental na prática da pesca artesanal.

"Acho representatividade importante, mas senti a necessidade de fazer algo mais efetivo. Por isso, a escolha em fazer mestrado em sociologia e estudar racismo ambiental na pesca artesanal", declarou.

Nota de repúdio

Por meio de nota, o Sindicato dos Servidores Técnicos Administrativos da Universidade Federal de Pernambuco (Sintufepe) classificou o caso como um "um brutal ataque às políticas afirmativas de inclusão por cotas e a evidência de racismo institucional praticados contra a servidora".

Ainda de acordo com o sindicato, "a decisão administrativa tomada pela instituição demonstra a forma descartável como é tratada a trajetória de luta de pessoas negras, revelando a farsa da meritocracia e reforçando o pacto da branquitude firmado entre a universidade, o poder judiciário e o candidato que questiona a vaga".

Regionalização da concorrência

Em seu voto, o desembargador federal Cid Marconi, afirmou que "sabe-se que o retrato da realidade racial brasileira, especialmente sob o critério estatístico, revela grande desigualdade social e, por conseguinte, de oportunidades, o que se dá por diversas razões, inclusive de natureza histórica".

Também no voto, ele reforçou a necessidade de regionalização da concorrência, "que se construiu ao longo do tempo como a melhor opção disponível para a construção de quadros permanentes, especialmente nas lotações menos disputadas".

O desembargador usou como exemplo um caso da Universidade Federal do Ceará, que fez a distribuição das vagas reservadas a negros e deficientes, calculando o percentual das cotas por cada campus e não levando em consideração a totalidade das vagas.

A instituição também "deu provimento", ou seja, aceitou os fundamentos da apelação da candidata de ampla concorrência que entrou na Justiça pelo cargo.

Nova ação na Justiça Federal

O advogado Rodrigo Almendra, que representa Nívia Tamires, afirmou que vai entrar com uma nova ação na Justiça Federal contra o reitor da UFPE, Alfredo Gomes. "A ação aponta como autoridade coautora o reitor da UFPE e tem natureza de mandado de segurança", disse.

Segundo Almendra, há duas formas de resolver a questão. "Uma, que é melhor para todos, é que ambas fiquem lá e trabalhem, porque existe disponibilidade de vagas e necessidade de serviço. A outra é a reparação do dano, partindo da premissa que a UFPE praticou um erro, ela teria que reparar o dano e indenizar a Nívia por conta disso. Mas a gente não tem interesse na segunda", destacou.

O advogado afirmou que o transtorno foi provocado por um erro da UFPE. "A UFPE errou. E quem está dizendo que errou é o Poder Judiciário, em um grau de recurso, através de um colegiado, e ainda foi uma decisão por unanimidade. Ela já era uma servidora estável. E a ordem judicial não era para retirar a Nívia, era para nomear outra pessoa, então está existindo um excesso de execução", observou.

Erro na nomeação

Advogado da candidata de ampla concorrência que entrou na Justiça pelo cargo, Raphael Tiburtino afirmou que a cliente o procurou em 2018 afirmando que, na opinião dela, teria tido um erro na ordem de nomeação dos candidatos. Ele explicou que ingressou com uma ação judicial para que fosse reconhecido o "erro da universidade" e ela fosse nomeada ao cargo.

"A gente reconhece a importância das políticas afirmativas, a gravidade do problema do racismo no Brasil. É claro que ela tem uma empatia pela situação da Nívia, é uma situação triste, mas não cabe a ela se manifestar sobre isso, até porque há um processo judicial", afirmou o advogado.

Raphael Tiburtino reforçou que a cliente, que preferiu não dar entrevista e não quis ser identificada, nunca foi contra a permanência de Nívia na universidade. "Na verdade, ela também teve um direito violado, tanto sim que a gente precisou ingressar com uma ação judicial", observou.

O que diz a UFPE

Por telefone, a pró-reitora de Gestão de Pessoas e Qualidade de Vida da UFPE, Brunna Carvalho, afirmou que a universidade atuou desde o primeiro momento em que foi informada judicialmente sobre o processo. Ela disse que a universidade interpôs todos os recursos cabíveis no processo judicial e buscou evitar a exoneração.

"A UFPE tem uma procuradoria vinculada ao governo federal, que faz a defesa. A universidade recorreu e perdeu. A última decisão que chegou para a gente, a orientação da procuradoria, que a gente tem que executar, é a exoneração de Nívea e nomeação da terceira colocada", disse.

Questionada se a UFPE errou ao fazer a convocação de Nívia, Brunna Carvalho afirmou que chamar a primeira colocada das vagas reservadas para negros "foi o entendimento na época".

"Logo no início das políticas de cotas, existia o entendimento de que, com a desistência da segunda colocada, o próximo a ser chamado era o primeiro das cotas. Foi uma interpretação da universidade na época e eu não diria que foi equivocada", justificou.

A pró-reitora explicou que, com a exoneração, Nívia deixa de ser servidora da UFPE, mas que a universidade disponibiliza a divisão que cuida da saúde mental dos servidores.

"A gente só fez a exoneração depois de todo o processo cumprido. A gente foi, de fato, obrigado a cumprir o que estava na decisão. A gente lamenta, mas teve que cumprir", afirmou.

Política de cotas

A advogada Caroline Lobato, presidente da Comissão de Direito Administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), explicou que, quando se trata de concurso público, existe o princípio da acessibilidade, para que o maior número de pessoas de diversas ordens possam se candidatar.

Em 2014, houve a edição da Lei 12.990, que busca reparar a distorção social que existe entre negros e brancos no mercado de trabalho. A lei estabelece uma política de cotas para, de fato, concretizar a acessibilidade.

"A lei equipara as condições do negro em relação ao branco, justamente reservando cotas. E determina que essa reserva de cotas deve ser de no mínimo 20% em cada concurso das vagas reservadas para negros, pardos e pessoas de origem indígena", lembrou.

No entanto, a advogada observou que nem sempre é possível reservar esses 20% por causa da realização de concursos públicos com poucas vagas, como o da UFPE.

"Então, a lei diz que, quando for um número reduzido de vagas, deve ter uma previsão de vagas para negros e indígenas a partir de três, para considerar esses 20% e para não ser uma coisa excessiva", detalhou.

No entanto, no concurso feito por Nívea, a UFPE não observou os critérios de regionalidade. "E foi aí que uma candidata se sentiu lesada, ingressou com um mandado de segurança, que é um remédio institucional, que é uma ação que serve para reparar ilegalidades da administração, do estado", explicou Caroline Lobato.

A decisão do juiz de primeiro grau foi de que a candidata que se sentiu lesada não teria direito e que permanecessem as coisas no estado em que estava, com Nívea no cargo.

"No entanto, a decisão do TRF-5, que é a segunda instância, o segundo grau de jurisdição, reformou essa decisão sob o argumento de que essa alternância e a proporcionalidade que a lei diz deve existir, mas respeitando o critério regional", explicou a especialista em direito administrativo.

Apesar de a lei 12.990 não tratar do critério de regionalidade, a advogada diz que, diante de caso concreto, é preciso "ter essa ponderação".

Fonte G1

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